quarta-feira, outubro 31, 2007

Ab aliquo

A mente humana é, sem dúvida, uma das mais notáveis criações da natureza. Tal notabilidade, contudo, não impede que o processo genético das sensações, emoções e pensamentos possa, eventualmente, transformar-se numa fonte inesgotável de horrores indizíveis, poço infindo de sofrimentos inimagináveis.
A esta conclusão cheguei após reler – e agora ele está pousado à minha frente, carcomido pelo tempo, tingido pelo sangue de longas datas coagulado – o breve relato de Valmond. Permita Deus, em sua infinita bondade, que os sofrimentos enfrentados pelo meu amigo não hajam sido tão intensos quanto o que ele alega haver experimentado; e que, neste exacto momento, possa gozar do alívio que não logrou desfrutar ao longo de sua breve – porém terrível – existência.
Eis o que, sem delongas, diz o relato do infeliz Valmond. E que o bom Deus tenha piedade de sua alma:

“Prezado Marius:
Escrevo-te, nesta hora derradeira, porque tu és o único ser existente – fora Deus e os demónios – que conhece os horrores causados pela minha excêntrica enfermidade.
O meu mal – para cuja natureza os tratados mais recentes, ou mesmo os alfarrábios cabalísticos de remota antiguidade, não me logram explicações – acompanha-me, como tu bem sabes, desde a minha mais tenra infância.
Tu sabes que sempre fui propenso a problemas oníricos, e as agonias infindas das noites de esmorecimento e torpor são a exclusiva causa da apatia e da languidez que tão profundamente martirizam os meus estados de vigília.
Com o passar dos anos, a predisposição aos surtos catalépticos – nos quais o meu corpo inerte aprisionava, como uma mordaça inexorável, pesadelos brumosos e espessos – evoluiu e acentuou-se, tanto na constância quanto na intensidade, a tal ponto que até hoje me abate e me assusta a simples menção da palavra noite. E tenho lutado, com todas as forças – se é que elas existem –, sem razoável sucesso, contra o simples facto de dormir. Dormir! Esse bálsamo! Mas para mim algo que não sei chamar senão pavor.
Ontem, porém, após cinco – e não dois nem três – bem-vindos dias de ininterrupta e fatigante vigília, porque extremamente necessária, mergulhei, novamente, como um náufrago desesperado, nas trevas abissais, povoadas por tenebrosos e implacáveis pesadelos.
Estava eu reclinado na minha poltrona de vime, a ler um enfadonho tratado de um obscurecido filósofo francês, quando, de súbito, vi que esta triste consciência era arrastada, impiedosamente, aos sulfurosos estados letárgicos, que tão debilmente limitam o sono da vigília. Tenho, nessa zona de percepção indefinida, ainda que fechados os olhos, a faculdade de contemplar, com cristalina nitidez, o mundo extático que circunlimita as minhas pálpebras pesadas, agora inúteis, porque, como lhe disse, posso perfeitamente devassar o intransponível. Demais, posso escutar as vozes marinhas que flutuam ao sabor do vento Norte, malgrado o assediante e monótono zumbido grave, cheio, pesado, que me irrompe, líquido, a cavidade de cada um dos ouvidos. E a esse estado letárgico, a princípio agradável, mas depois preocupante, segue-se uma sensação de solidão e abandono, de prisão em si mesmo, que parece não possuir duração, de tão longo que é o seu espraiar, e tão intenso que é o seu poder. Vem, então, uma violência súbita na alma, quase física; segue-se, daí, um frémito, que antecipa o esperado e invencível torpor, em que os meus músculos enrijecem, e cada fibra retesada do meu corpo é varrida por gélidos calafrios, em ondas perenes, de variada intensidade.
Neste estado de profunda morbidez – que me arrasta ao pânico incontrolável, em que a minha consciência parece cair, cair e cair num fosso escuro e infindo –, todo esforço concentrado no acto de acordar é inútil. Não há força interior, não há esforço supremo, grandioso que seja, que faça a alma ressurgir do abismo, devolvendo-me ao súbito alívio da vigília. Ao invés, o torpor amplia-se em cada uma das direcções multi dimensionais de minha consciência, e expande-se com eólica velocidade, até a preencher do mais negro e profundo horror. E meu corpo, inerte, rígido como um cadáver, tudo aceita: estou rendido, pronto para morrer. Aqui morro eu...
É aqui que ressurgem, sedentos de alma, os pesadelos vampirescos.
Caindo sobre as lápides limosas.
Respiro, devagar, o ar brumoso, repleto de trevas ululantes. O vento traz o seco aroma de velhas sepulturas. Há uma Lua no céu e a luz cálida refulge, como acalanto, nas garras frias, revolvidas, que encimam as árvores velhas e esguias. As cruzes, porém, recuam nas trevas, mas é para elas que eu dirijo os meus passos entorpecidos.
Meu cérebro – minha alma? – está completamente vazio. Sou um algo impelido pelos ventos, e sussurram-me aos ouvidos outros ventos, em acordes dissonantes, dissidentes, o nome de minha loucura (Bianca?).
E lá está a lápide para onde os ventos – todos os ventos – me empurram:


“AQUI JAZ
BIANCA PATERNOSTRO
NASCIDA EM 31-I0-1727
FALECIDA EM 31-I0-1742
“QUE DEUS TENHA PIEDADE DE SUA POBRE ALMA,
POSTO QUE SUA CARNE DESONROU O PRÓPRIO NOME”

Ponho-me a escavar, febrilmente, o solo empedernido, cheio de desonra e aridez, até fluir o sangue, respingando pelas tiras em que se vertiam as pontas dos meus dedos.A Lua lúgubre vagueia, louca, no céu, mas não emite um fiasco do mais miúdo lume. Um frémito revolve o meu coração. Mas o meu coração está oco. A palpitação não vem do meu coração. Vem do âmago do ataúde. Algo nele pulsa, move-se, contorce-se, debate-se numa agonia alucinada. Por isso trabalho rapidamente, rapidamente, rapidamente...E, no momento em que a madeira podre do ataúde se dissolveu ao mínimo contacto com os vapores da noite, a Lua emitiu um brilho ensandecido. E vi as órbitas, devassadas pelos vermes, que um dia engastaram, como uma esmeralda no anel, os olhos vívidos da bela Bianca. E, extasiado, atónito de paixão, acolhi em minha boca a língua túrgida e negra que me estendia o cadáver de Bianca, cuja carne desonrara o próprio nome.
E, sob a sombra da lápide, repeti o gesto de desonra, nas frias carnes que um dia compunham, incorrupta, a bela Bianca...”

Visitei, hoje, o túmulo do meu amigo Valmond.
O que a vida se recusa a fundir, bem o fazem as sombras.
É que a lápide, também manchada de desonra, onde repousa Valmond, ergue-se ao lado do sepulcro de sua amada Bianca, ambos à sombra de uma velha nogueira.
Há exactamente cinquenta anos, não mais, ambos foram sepultados. E eu também. Doloroso sepulcro é este, a quem chamam vida. A minha carne é uma sepultura e os meus ossos são a minha alma.
Mas eu era jovem, há cinquenta anos, não mais. Numa visita matinal, corriqueira, não encontrei Valmond, a queixar-se de sua aborrecida insónia.
Na sua escrivaninha, apenas uma carta, a mesma carta sobre a qual agora me debruço. Na sua loucura, retornara a casa, deixara-me uma confissão sombria, escrita às pressas e, simplesmente, desaparecera, ao encontro do Sol que debilmente espraiava uma expectativa de amanhecer.
Para muito além dos umbrais encimados por piedosos serafins, e alhures das cruzes vicejantes, mas no sítio desolado onde se enterram os desonrados e os suicidas, vi um cadáver de mulher, insepulto. E vislumbrei, também, o corpo de meu amigo, a oscilar suavemente, contido pelo nó da corda ao pescoço, sob um galho da nogueira, árvore ancestral, e tão descarnada quanto as extremidades violáceas dos dedos de Valmond, apinhadas de sangue e lascas de madeira.
Mas o meu amigo sequer esfriara. Havia ainda um suor viçoso, que exsudava de sua fronte.
O que a vida separa, muito bem as trevas unem.
Dir-se-ia que em seus olhos mortos, terrivelmente abertos, ainda perpassavam – e eu podia lê-los – alguns sonhos.
E alguns pesadelos, talvez.
Dir-se-ia.